Vítima,
agressores e vingança: receita moderna de intolerância?
“É a nossa vez”, parece dizer
quem se anuncia como “do bem”, ao levantar a voz contra quem é “do mal”.
É cada vez mais frequente o
discurso do vingador, pontuado de pequenas fórmulas.
Os tradicionais jornais, no
seu modo virtual, e as redes sociais estão cheios de berros, de brados, de
insultos, de opiniões sem flexibilidade e de um humor inconsequente, caso dos
que não se incluem no grupo dos vingadores, mas fazem troça de tudo à volta.
Sinto-me incomodada com o
recurso às fórmulas, aos rótulos e também com a recusa em compreender. Cada um
tem seu ritmo, mas o trânsito fica caótico nessa conversa entre fortes, fracos,
displicentes… as palavras se sobrepõem, umas abafam as outras, e pouca gente
tem tempo e profundidade para mergulhar nessa trama, sem culpar ou imitar quem
grita mais alto.
Sinto o mesmo incômodo quando
ouço que determinado debate público não tem importância, porque não é uma
prioridade tratar daquele assunto, naquela hora. Tá certo que as pautas são
manipuladas, mas com um pouco de paciência, de ironia e de habilidade, devíamos
contribuir para desmanchar conveniências, para retirar o poder de quem nos
obriga a olhar para um tema, evitando outros.
Os assuntos vão surgindo, uns
são incontornáveis, outros, perfumaria; poderia ser suficiente para nós, como
grupo muito muito amplo que somos, seguir em frente, se a perfumaria for assim
tão irritante (e tendo ou não o que propor acerca dos assuntos incontornáveis)
ou assistir ao debate dito pertinente e oportuno, para aprender mais.
Mas, num toma-lá-dá-cá a
propósito de uma notícia mal redigida num portal da Internet, por exemplo,
facilmente se nota como os participantes não têm norte, como comentam a notícia
em si ou a falta de qualidade do texto, sem observar o mínimo de coerência no
que verbalizam, sem respeitar pelo menos o princípio da inteligibilidade.
No que diz respeito ao
Brasil, é batata! Entendo que as pessoas estejam dececionadas com os rumos da
política, com o descontrole da violência, mas não haverá uma pessoa sequer, um
grupo para funcionar com contraponto à prática de transformar qualquer debate
em queixa contra o governo federal e contra “os direitos humanos”? Ninguém para
aconselhar que uns e outros usem menos palavrões e mais metáforas, e mais
provérbios, e mais imagens?
De longe, o que eu suspeito é
que as pessoas que dão a cara estão enfurecidas, sem ideias muito responsáveis,
sem coragem de encarar o mais imediato, que é o dia a dia no seu mais
inevitável conflito. As escolas são barris de pólvora, vamos trabalhar e vamos
a elas entregar nossos filhos para a obrigação de estudar, com a melhor
participação possível?
As ruas numa parte do Brasil
têm uma frota de carros absurdamente grande, por isso vamos com calma ao
volante, tenhamos respeito dentro dos meios de transporte público, com o
ciclista e como ciclista, com o pedestre e como pedestre.
As greves nas universidades
já eram uma opção quando eu ingressei no curso de Letras, em 1994. Desgastavam
alunos, professores, não resultavam em muitas contratações (pelo menos não foi
o que eu vi, como aluna), quebravam o semestre e o ano letivo e davam uma
insegurança enorme no principal, que é o aprendizado (do conteúdo, da
cidadania). Hoje, em algumas faculdades, foram colocados nos corredores até
sofás e eletrodomésticos dos alunos, como forma de protesto. Quem resguarda o
direito de outros membros da comunidade, que podem precisar transitar dentro
dessas faculdades livremente? Quer dizer que a mais inteligente resposta aos
tiranos é tiranizar os outros?
Já escrevi muito
superficialmente sobre uma ideia que eu conheci por meio de um livro de Alberto
Manguel, escritor argentino, e agora volto a ela. O livro é No bosque
do espelho.
Ele tem um raciocínio bem
fundamentado em autores conhecidos do público da literatura de ficção (como
Borges, Kipling e Conrad). Na leitura que eu faço do capítulo VII, “Crime e
Castigo”, ele mostra como prevalece entre nós a ideia de um direito à vingança.
Segundo ele, essa ideia é o
resultado de uma intolerância que, por sua vez, é retrato da estupidez de
alguns regimes. Quem tem mais poder e não sabe usá-lo, oprime; quem é oprimido
às vezes responde com a mesma estupidez das autoridades desse regime e, preso a
ela, não enxerga mais e fica a falar e falar para os estereótipos, isto é,
entra numa conversa enlouquecida com os únicos representantes que vê, sem
suspeitar que existem, no próprio mundo dele, outros grupos, outras vozes,
outras razões.
Manguel salienta que entre a
literatura que é mero rabisco (por mais refinada que seja) e a possibilidade
que só ela dá de abrir horizontes a partir de rabiscos, existe uma saída digna
até para quem foi tomado pela ideia de vingança.
Está no final do capítulo,
cujo subtítulo é “Idade da Vingança”, uma curta história real sobre um homem
equilibrado que, depois de perder filho e nora, escolheu a vingança. Nas
últimas linhas, o pote de ouro no final do arco-íris: quem tem força maior que a
da vingança, quem tem um valor mais alto, precisa fazer bom uso dos seus
argumentos e, com eles, apontar um caminho de mais dignidade. No caso verídico
relatado por Manguel, estão um poeta e Mães da Plaza de Mayo, ambos oprimidos
com a mais dura das crueldades. Um deles acaba persuadido pelo outro a crer na
liberdade de nos distinguirmos dos opressores, ao abandonarmos a ideia de
vingança. O resto é história.
Extraído do site: http://www.ponderapandora.blogspot.pt/
Betina Ruíz
Extraído do site: http://www.ponderapandora.blogspot.pt/
Betina Ruíz
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