Na primeira década do século XXI (2001 a 2010)
ocorreram muitas descobertas científicas, a Revista Science fez uma seleção das
dez mais marcantes, confesso que fiquei surpresa ao saber que avanços na área
da “cosmologia” permitiu criar uma sólida teoria que prevê que o universo é
composto de apenas 4,56% de matéria comum, 22,7% de matéria escura e 72,8% de energia
escura, ou ainda que nove em cada 10
células do corpo são constituídas por micróbios, só no sistema digestivo mais
de mil espécies possuem 100 vezes mais ADN do que nosso próprio corpo!
Mas porque comecei a minha explanação acerca do tráfico de seres humanos com isso?
Partimos do pressuposto que detemos conhecimento; somos todos conhecedores
daquilo que desconhecemos e desconhecemos porque não somos suficientemente
humildes para conhecer ou re-conhecer.
Para muitas pessoas, o Tráfico de Seres Humanos é apenas uma
“lenda urbana”, mais um “tema” para as novelas, algo fictício, difícil de
acreditar. Estamos em pleno século XXI! Os Direitos Humanos essenciais devem
ser respeitados! Aos menos na União Europeia, já que ainda não o são na América
do Sul, África e Ásia, onde centenas de milhares de pessoas, sobretudo mulheres
e crianças, são vítimas de todo o tipo de exploração.
Estamos na era do homem moderno, que com um ipod deixou de ter o mundo aos seus pés, para o ter nas suas mãos. Uma
sociedade mercantilista, que trata as pessoas como “coisas” e que portanto “coisificam” sentimentos e
ações. Cada qual olha por si e não mede esforços para atingir os fins, uma
sociedade em colapso, estrangulada por Leis que se sobrepõe, que não se fazem
cumprir, por processos que se avolumam, atropelam e interpelam. Uma sociedade
doente, sem valor, sem moral, escrúpulos ou ética.
Sinto-me exausta, exausta de palavras vazias, perdidas, exausta de
ações que param na metade do caminho, porque o caminho é longo, tortuoso e difícil. Estamos na era do “não te metas”, “não fales”, “não dê a conhecer o
que pensas”… Mas não foi para ter este direito salvaguardado que lutamos
séculos a fio?
Não percebo a dialética, sem a cinética, ou a cibernética, percebo
de pessoas de carne e osso, com sangue e vísceras, com hormonas e feromonas…
Percebo de indivíduos com passado, presente e sem perspetiva de futuro, percebo
de pessoas que buscam ávidas por alguém que as estenda a mão, simplesmente
porque precisam que reconheçam e validem o seu sofrimento, acreditem na sua
história, na sua trajetória e nas palavras não ditas, no olhar vago, vazio… "Atrás de uma narrativa pode haver outra história" (OTSH). Percebo de gente humilde, analfabeta e letrada, gente que tem a vida do avesso
e mesmo assim nunca desistem de lutar, ultrapassar as adversidades da vida, as
tempestades e terremotos, gente que cai e levanta, mesmo sabendo que
vai novamente cair e se possível for vão novamente levantar, porque a vida é
feita de caminhos, escolhas, “não escolhas”, pessoas boas e más, pessoas a quem
a vida tudo dá e pessoas a quem a vida tira tudo, mesmo aquilo que nunca tiveram!
Sim, estou exausta das pessoas que só tem corpo e cujas ações não
condizem com as palavras, cuja voz “empoderada” nada fala e cujo poder nada
serve, a não ser a si próprios. O Tráfico de Seres Humanos é uma violação fundamental dos direitos
humanos, é um fenômeno cujo foco é a
exploração em condições de trabalho e vida degradantes, semelhantes à
escravatura!
Em
2000, surge o Protocolo da ONU para Prevenir, Suprimir e Punir o Tráfico de Pessoas que define “Tráfico de Pessoas”
como o “recrutamento, transporte, transferência, alojamento ou acolhimento de
pessoas, por meio de ameaça ou uso de força, rapto, coação, fraude, engano,
abuso de poder ou de uma posição de vulnerabilidade da vítima em relação ao
explorador, ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o
consentimento de uma pessoa, que tenha controlo sobre outra pessoa, para fins
de exploração”.
“Embora os números sejam muito contraditórios,
estima-se que cerca de 12 milhões de pessoas no mundo sejam reféns deste
flagelo social, mais de 800 mil somente na União Europeia. Entretanto os dados
conhecidos são muito inferiores aos reais, ou pouco consistentes, uma vez que
estão baseados em métodos e números estimativos” (Dra. Maria Grazia
Giammarinaro – Juíza Tribunal de Roma - Itália).
Novos aspetos do
Tráfico Humano nos colocam diante de muitos desafios para os quais a Legislação
ainda não prevê as devidas respostas, apesar das novas Diretivas do Parlamento
e Conselho Europeu.
É um fenómeno em
constante crescimento, que se reproduz nos mais diversos locais, seja através
do Tráfico para Exploração Laboral (agricultura, comércio, construção civil,
indústria, pesca, turismo, trabalhos domésticos e todos os serviços que podem ser subcontratados, através de
intermediários), Exploração Sexual (indústria do sexo e prostituição),
Tráfico para Venda de Mulheres e Crianças, Tráfico para Mendicidade, Extração
de Órgãos, etc.
Os meios
utilizados para o efeito vão desde a burla, coação, ameaças, subjugação
psicológica, aprisionamento, etc. Os
traficantes fazem crer que a situação em que o subjugado se encontra é afinal a
sua melhor opção.
Dada a sua
complexidade, Interdisciplinaridade, Intersecionalidade e Internacionalização,
torna-se cada vez mais difícil detetar e intervir de forma célere e eficaz. É fundamental dar visibilidade a este
fenômeno, ou seja alterar a perceção que a sociedade, a polícia, os técnicos e
a própria vítima têm acerca da situação, bem como fundamentar as práticas
preventivas e punitivas, além da otimização dos recursos disponíveis no sentido
de melhorar a proteção aos seres humanos em situação de maior vulnerabilidade.
Trata-se pois de um fenômeno de grandes dimensões, transversal a todos os
Cidadãos, que movimenta milhões de euros.
Outro aspeto que
chama a atenção é sobretudo a tolerância das pessoas circundantes e da própria
vítima acerca deste tipo de exploração, sobretudo laboral, ainda mais numa
altura de forte recessão económica e importantes “cortes” nas Contribuições
Sociais.
Diversos fatores
contribuem para a disseminação do Tráfico de Seres Humanos, sejam
socioeconómicos e políticos, tanto
individuais como estruturantes, já que os motivos que levam as pessoas a serem
gravemente exploradas são diversos e complexos.
Num esforço para encontrar os motivos pelos quais
as pessoas se tornam vítimas de tráfico, os grandes fenómenos globais, como a
globalização, a pobreza, a imigração ilegal, a falta de acesso à educação, as
desigualdades socioeconómicas das mulheres e a falta de oportunidades de
emprego, têm sido implicados como causas estruturantes do Tráfico de Seres
Humanos.
A questão da migração, a considerável diminuição
das oportunidades de imigração legal, a disparidade económica entre as diversas
regiões do mundo, contribui para a existência de um grande número de potenciais
trabalhadores. Os desfasamentos entre as políticas de imigração e as realidades
do mercado servem para tornar uma grande parte da migração transfronteiriça “ilegal”,
aumentando a situação de vulnerabilidade dos potenciais trabalhadores imigrantes.
Esta situação é ainda mais agravada, pois a ilegalidade acarreta consigo a
falta de reconhecimento dos direitos destes povos nos seus pontos de destino.
Além de
vulnerabilidades estruturais, alguns especialistas e organizações têm apontado
anteriores abusos físicos, sexuais e emocionais, por exemplo em cenários de
conflito bélico, ou por parte de familiares ou conjugues como uma
vulnerabilidade adicional para a ocorrência de exploração sexual na
prostituição ou em outras situações de trabalho.
A maior parte dos casos de tráfico é nacional ou
regional, mas também há muitos casos de tráfico de longa distância. A Europa é
por norma o destino final das vítimas, provenientes de diversos locais,
traficadas sobretudo da Ásia. O Continente Americano (Norte e Sul) é importante
tanto como destino de origem, como de destino das vítimas de tráfico.
O tráfico humano afeta todos os países do mundo,
enquanto países de origem, de trânsito ou de destino, ou mesmo como uma
combinação de todas estas vertentes. O tráfico ocorre, muitas vezes em países
pouco desenvolvidos, onde as pessoas se tornam vulneráveis ao tráfico em
virtude da pobreza, de situação de pós-conflito ou de outras condicionantes. A
luta contra a discriminação nos países de origem e a conscientização da
magnitude do problema, que abarca também a sociedade nos países de destino,
torna-se fundamental para reforçar a resposta social circundante, a ajuda,
apoio, suporte, qualificação jurídica, legal, assim como alterações nas
políticas de trabalho, apoio jurídico, identificação das vítimas e suporte
antes, durante e depois do Processo Criminal.
Ana Saladrigas
Acerca do Colóquio Internacional do Tráfico de Seres Humanos / Coimbra Abril 2014
Na primeira década do século XXI (2001 a 2010) ocorreram muitas descobertas científicas, a Revista Science fez uma seleção das dez mais marcantes, confesso que fiquei surpresa ao saber que avanços na área da “cosmologia” permitiu criar uma sólida teoria que prevê que o universo é composto de apenas 4,56% de matéria comum, 22,7% de matéria escura e 72,8% de energia escura, ou ainda que nove em cada 10 células do corpo são constituídas por micróbios, só no sistema digestivo mais de mil espécies possuem 100 vezes mais ADN do que nosso próprio corpo!
Mas porque comecei a minha explanação acerca do tráfico de seres humanos com isso?
Partimos do pressuposto que detemos conhecimento; somos todos conhecedores
daquilo que desconhecemos e desconhecemos porque não somos suficientemente
humildes para conhecer ou re-conhecer.
Para muitas pessoas, o Tráfico de Seres Humanos é apenas uma
“lenda urbana”, mais um “tema” para as novelas, algo fictício, difícil de
acreditar. Estamos em pleno século XXI! Os Direitos Humanos essenciais devem
ser respeitados! Aos menos na União Europeia, já que ainda não o são na América
do Sul, África e Ásia, onde centenas de milhares de pessoas, sobretudo mulheres
e crianças, são vítimas de todo o tipo de exploração.
Estamos na era do homem moderno, que com um ipod deixou de ter o mundo aos seus pés, para o ter nas suas mãos. Uma
sociedade mercantilista, que trata as pessoas como “coisas” e que portanto “coisificam” sentimentos e
ações. Cada qual olha por si e não mede esforços para atingir os fins, uma
sociedade em colapso, estrangulada por Leis que se sobrepõe, que não se fazem
cumprir, por processos que se avolumam, atropelam e interpelam. Uma sociedade
doente, sem valor, sem moral, escrúpulos ou ética.
Sinto-me exausta, exausta de palavras vazias, perdidas, exausta de
ações que param na metade do caminho, porque o caminho é longo, tortuoso e difícil. Estamos na era do “não te metas”, “não fales”, “não dê a conhecer o
que pensas”… Mas não foi para ter este direito salvaguardado que lutamos
séculos a fio?
Não percebo a dialética, sem a cinética, ou a cibernética, percebo
de pessoas de carne e osso, com sangue e vísceras, com hormonas e feromonas…
Percebo de indivíduos com passado, presente e sem perspetiva de futuro, percebo
de pessoas que buscam ávidas por alguém que as estenda a mão, simplesmente
porque precisam que reconheçam e validem o seu sofrimento, acreditem na sua
história, na sua trajetória e nas palavras não ditas, no olhar vago, vazio… "Atrás de uma narrativa pode haver outra história" (OTSH). Percebo de gente humilde, analfabeta e letrada, gente que tem a vida do avesso
e mesmo assim nunca desistem de lutar, ultrapassar as adversidades da vida, as
tempestades e terremotos, gente que cai e levanta, mesmo sabendo que
vai novamente cair e se possível for vão novamente levantar, porque a vida é
feita de caminhos, escolhas, “não escolhas”, pessoas boas e más, pessoas a quem
a vida tudo dá e pessoas a quem a vida tira tudo, mesmo aquilo que nunca tiveram!
Sim, estou exausta das pessoas que só tem corpo e cujas ações não
condizem com as palavras, cuja voz “empoderada” nada fala e cujo poder nada
serve, a não ser a si próprios. O Tráfico de Seres Humanos é uma violação fundamental dos direitos
humanos, é um fenômeno cujo foco é a
exploração em condições de trabalho e vida degradantes, semelhantes à
escravatura!
Em
2000, surge o Protocolo da ONU para Prevenir, Suprimir e Punir o Tráfico de Pessoas que define “Tráfico de Pessoas”
como o “recrutamento, transporte, transferência, alojamento ou acolhimento de
pessoas, por meio de ameaça ou uso de força, rapto, coação, fraude, engano,
abuso de poder ou de uma posição de vulnerabilidade da vítima em relação ao
explorador, ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o
consentimento de uma pessoa, que tenha controlo sobre outra pessoa, para fins
de exploração”.
“Embora os números sejam muito contraditórios,
estima-se que cerca de 12 milhões de pessoas no mundo sejam reféns deste
flagelo social, mais de 800 mil somente na União Europeia. Entretanto os dados
conhecidos são muito inferiores aos reais, ou pouco consistentes, uma vez que
estão baseados em métodos e números estimativos” (Dra. Maria Grazia
Giammarinaro – Juíza Tribunal de Roma - Itália).
Novos aspetos do
Tráfico Humano nos colocam diante de muitos desafios para os quais a Legislação
ainda não prevê as devidas respostas, apesar das novas Diretivas do Parlamento
e Conselho Europeu.
É um fenómeno em
constante crescimento, que se reproduz nos mais diversos locais, seja através
do Tráfico para Exploração Laboral (agricultura, comércio, construção civil,
indústria, pesca, turismo, trabalhos domésticos e todos os serviços que podem ser subcontratados, através de
intermediários), Exploração Sexual (indústria do sexo e prostituição),
Tráfico para Venda de Mulheres e Crianças, Tráfico para Mendicidade, Extração
de Órgãos, etc.
Os meios
utilizados para o efeito vão desde a burla, coação, ameaças, subjugação
psicológica, aprisionamento, etc. Os
traficantes fazem crer que a situação em que o subjugado se encontra é afinal a
sua melhor opção.
Dada a sua
complexidade, Interdisciplinaridade, Intersecionalidade e Internacionalização,
torna-se cada vez mais difícil detetar e intervir de forma célere e eficaz. É fundamental dar visibilidade a este
fenômeno, ou seja alterar a perceção que a sociedade, a polícia, os técnicos e
a própria vítima têm acerca da situação, bem como fundamentar as práticas
preventivas e punitivas, além da otimização dos recursos disponíveis no sentido
de melhorar a proteção aos seres humanos em situação de maior vulnerabilidade.
Trata-se pois de um fenômeno de grandes dimensões, transversal a todos os
Cidadãos, que movimenta milhões de euros.
Outro aspeto que
chama a atenção é sobretudo a tolerância das pessoas circundantes e da própria
vítima acerca deste tipo de exploração, sobretudo laboral, ainda mais numa
altura de forte recessão económica e importantes “cortes” nas Contribuições
Sociais.
Diversos fatores
contribuem para a disseminação do Tráfico de Seres Humanos, sejam
socioeconómicos e políticos, tanto
individuais como estruturantes, já que os motivos que levam as pessoas a serem
gravemente exploradas são diversos e complexos.
Num esforço para encontrar os motivos pelos quais
as pessoas se tornam vítimas de tráfico, os grandes fenómenos globais, como a
globalização, a pobreza, a imigração ilegal, a falta de acesso à educação, as
desigualdades socioeconómicas das mulheres e a falta de oportunidades de
emprego, têm sido implicados como causas estruturantes do Tráfico de Seres
Humanos.
A questão da migração, a considerável diminuição
das oportunidades de imigração legal, a disparidade económica entre as diversas
regiões do mundo, contribui para a existência de um grande número de potenciais
trabalhadores. Os desfasamentos entre as políticas de imigração e as realidades
do mercado servem para tornar uma grande parte da migração transfronteiriça “ilegal”,
aumentando a situação de vulnerabilidade dos potenciais trabalhadores imigrantes.
Esta situação é ainda mais agravada, pois a ilegalidade acarreta consigo a
falta de reconhecimento dos direitos destes povos nos seus pontos de destino.
Além de
vulnerabilidades estruturais, alguns especialistas e organizações têm apontado
anteriores abusos físicos, sexuais e emocionais, por exemplo em cenários de
conflito bélico, ou por parte de familiares ou conjugues como uma
vulnerabilidade adicional para a ocorrência de exploração sexual na
prostituição ou em outras situações de trabalho.
A maior parte dos casos de tráfico é nacional ou
regional, mas também há muitos casos de tráfico de longa distância. A Europa é
por norma o destino final das vítimas, provenientes de diversos locais,
traficadas sobretudo da Ásia. O Continente Americano (Norte e Sul) é importante
tanto como destino de origem, como de destino das vítimas de tráfico.
O tráfico humano afeta todos os países do mundo,
enquanto países de origem, de trânsito ou de destino, ou mesmo como uma
combinação de todas estas vertentes. O tráfico ocorre, muitas vezes em países
pouco desenvolvidos, onde as pessoas se tornam vulneráveis ao tráfico em
virtude da pobreza, de situação de pós-conflito ou de outras condicionantes. A
luta contra a discriminação nos países de origem e a conscientização da
magnitude do problema, que abarca também a sociedade nos países de destino,
torna-se fundamental para reforçar a resposta social circundante, a ajuda,
apoio, suporte, qualificação jurídica, legal, assim como alterações nas
políticas de trabalho, apoio jurídico, identificação das vítimas e suporte
antes, durante e depois do Processo Criminal.
Ana Saladrigas
Acerca do Colóquio Internacional do Tráfico de Seres Humanos / Coimbra Abril 2014
Ana Saladrigas
Acerca do Colóquio Internacional do Tráfico de Seres Humanos / Coimbra Abril 2014