sábado, 9 de novembro de 2013

JUSTIÇA RESTAURATIVA - O QUE É?

A Justiça Restaurativa é uma corrente relativamente recente nas áreas da vitimologia e da criminologia. Surgida em meados da década de 70, nasce associada à proclamação do fracasso da denominada justiça retributiva, incapaz de dar respostas adequadas ao crime e às problemáticas específicas de vítimas e infractores.
O sistema de justiça criminal tradicional concebe e encara o crime - o acto criminoso - como um conflito entre o Estado (ou o sistema formal de justiça criminal) e o infractor - o autor do crime. Tem natureza retributiva, na medida em que as suas respostas se centram no acto criminoso, e é formalmente legalista e garantístico. Ninguém hoje duvida de que este sistema se encontra longe da perfeição, estando à vista de todos uma série de elementos indiciadores da sua crise: a finalidade pouco clara da punição (reabilitar e promover a alteração do comportamento do infractor? Inibir outros de praticarem crimes? Afastar, pelo menos temporariamente, o infractor da sociedade, no intuito de proteger esta?), a ineficácia do aumento das penas, os custos astronómicos consumidos pela máquina judicial e, especialmente, pelo sistema prisional, a elevada taxa de reincidência e o escasso envolvimento das vítimas.
Face a este fracasso do actual sistema de justiça criminal, com consequências particularmente visíveis ao nível do crescente sentimento de insegurança – potenciado pela projecção mediática dos processos mais sonantes, diariamente acompanhados por rádios, televisões e jornais -, são em abstracto configuráveis dois caminhos alternativos: ou “mais do mesmo”, isto é, ou se dota o actual sistema de mais meios humanos e materiais, aumentando-se o número de tribunais, de magistrados, de prisões e, eventualmente, se agravam as penas, ou se desenvolvem e exploram novas ideias e modelos para lidar com o fenómeno da criminalidade. A denominada justiça restaurativa revê-se neste segundo caminho.
 O QUE É?
Encontra-se na literatura sobre a matéria inúmeras definições de Justiça Restaurativa, nem sempre coincidentes. As duas definições mais recorrentemente mencionadas e consensualmente aceites:
"É um processo através do qual as partes envolvidas num crime decidem em conjunto como lidar com os efeitos deste e com as suas consequências futuras." (Marshall, 1997)
"É um processo no qual a vítima, o infractor e/ou outros indivíduos ou membros da comunidade afectados por um crime participam activamente e em conjunto na resolução das questões resultantes daquele, com a ajuda de um terceiro imparcial." (Projecto de Declaração da ONU relativa aos Princípios Fundamentais da Utilização de Programas de Justiça Restaurativa em Matéria Criminal). 

  
PRINCÍPIOS, VALORES E CARACTERÍSTICAS FUNDAMENTAIS
A Justiça Restaurativa é uma forma diferente de perspectivar como é que todos nós, enquanto vítimas, infractores, autoridades policiais e judiciárias e comunidade em geral devemos responder ao crime. É um novo padrão de pensamento, que vê o crime não meramente como violação da lei, mas como causador de danos às vítimas, à comunidade e até aos infractores. Centra-se na activa participação das vítimas, agressores e comunidades, muitas vezes concretizada através de encontros entre estes, num esforço para identificar a injustiça praticada, o dano resultante, os passos necessários para a sua reparação e as acções futuras que possam reduzir a possibilidade de ocorrência de novos crimes.
A justiça restaurativa coloca a vítima e o infractor no centro do processo, como seus protagonistas, procurando o empowerment e a satisfação das partes, a reparação dos danos sofridos, o envolvimento comunitário e a restauração das relações humanas existentes. Perspectiva o crime como uma perturbação nas relações entre pessoas que vivem em conjunto numa comunidade, numa sociedade ou nas relações entre o infractor e a comunidade onde se insere.
São geralmente apontados três elementos fundamentais do conceito de Justiça Restaurativa:
» o elemento social - o crime é encarado não como uma mera violação da lei mas, acima de tudo, como uma perturbação, uma disfunção das relações humanas. Esta perspectiva implica uma mudança de paradigma: é a redefinição do conceito de crime, passando este a ser encarado como um acto de uma pessoa contra outra, violador de uma relação no seio de uma comunidade, em vez de um acto contra o Estado. A tónica é colocada no comportamento anti-social e na brecha aberta nas relações comunitárias;
» o elemento participativo ou democrático – este elemento é a pedra de toque de todo o conceito: só pode falar-se em justiça restaurativa se houver um envolvimento activo das vítimas, infractores e, eventualmente, da comunidade, guindados a “actores principais” no âmbito destes procedimentos;
» o elemento reparador – os processos restaurativos são orientados para a reparação da vítima: pretende-se que o infractor repare o dano por si causado, e o facto de este e a vítima estarem envolvidos no procedimento permite ir ao encontro das reais e concretas necessidades desta.
Idealmente, os principais méritos da justiça restaurativa são, ao promover a participação activa de vítimas, infractores e comunidades, permitir às primeiras expressar os sentimentos experienciados, as consequências decorrentes do crime e as necessidades a suprir para a ultrapassagem dos efeitos deste, proporcionar aos segundos a possibilidade de compreenderem em concreto o impacto que a sua acção teve na vítima, de assumirem a responsabilidade pelo acto perpetrado, de repararem de alguma forma o mal causado e possibilitar às terceiras a recuperação da “paz social”. Enumere-se mais em pormenor as virtudes que a doutrina, coadjuvada pelas investigações já desenvolvidas nesta área, aponta à Justiça Restaurativa. 
A justiça restaurativa e
» as vítimas;
» os infractores;
» as comunidades;
» o sistema de justiça tradicional. 
As vítimas de crime têm a oportunidade de:
» confrontar o infractor com o impacto que o crime lhe causou, expressando os seus sentimentos, a forma como a sua vida foi afectada pelo crime, as suas emoções e necessidades;
» descobrir como é o infractor - “conhecer-lhe o rosto”;
» formular perguntas (através do mediador ou directamente) a que somente o autor do crime poderá responder: porque é que fez o que fez, porquê a mim, fiz alguma coisa que proporcionasse ou provocasse o crime, etc.;
» afastar medos e receios sobre o infractor: será que vai voltar, estarei em perigo;
» receber um pedido de desculpas e presenciar o arrependimento;
» com maior probabilidade, receber do infractor justa reparação dos danos materiais e não materiais sofridos;
» participar de forma mais activa numa proposta de solução para o caso;
» evitar a morosidade do processo penal, assim como as frequentes idas a Tribunal, com o consequente efeito revitimizador;
» “encerrar” o assunto, o que pode ajudar a recuperar a paz de espírito. 
Os autores do crime (os infractores) têm a oportunidade de:
» assumir a responsabilidade pelo seu acto;
» explicar o porquê da prática do crime;
» tomar consciência dos efeitos do crime na vítima e compreender a verdadeira dimensão humana das consequências do seu comportamento, o que mais facilmente conduzirá ao seu verdadeiro arrependimento;
» pedir desculpa;
» proporcionar à vítima justa reparação pelos danos causados;
» actuar no futuro de acordo com a experiência e conhecimentos entretanto adquiridos;
» aumentar o nível de auto-conhecimento e de auto estima;
» promover a sua reinserção social – reabilitando-o junto da vítima e da sociedade e contribuindo para a redução da reincidência. 
comunidade experiencia os seguintes efeitos positivos decorrentes da justiça restaurativa:
» aproximação dos cidadãos da realização da Justiça, permitindo a sua participação na resolução dos conflitos verificados no seio da comunidade;
» redução do impacto do encarceramento na comunidade - quando os infractores, depois de cumprirem pena de prisão, regressam à sua comunidade, vêm “formados” em crime;
» promoção da pacificação social;
» realização da prevenção geral e da prevenção especial – contributo para a redução da reincidência. 
A justiça restaurativa beneficia o sistema tradicional de justiça criminal e a administração da Justiça nas seguintes vertentes:
» contribui para a individualização das respostas e reacções jurídico-penais face às características de cada caso;
» promove a aproximação e a compreensão do sistema judicial de justiça pelos cidadãos;
» contribui para a melhoria da imagem e percepção dos cidadãos da Justiça;
» facilita a resolução de litígios de uma forma rápida, flexível e participada;
» contribui para a prevenção de litigiosidade;
» pode contribuir para a redução de processos no sistema tradicional de justiça criminal, possibilitando a concentração de esforços e meios em áreas de criminalidade mais exigentes;
» reduz os custos da “máquina” judicial;
» reduz os custos com o encarceramento.
A justiça restaurativa tem sido levada à prática através de diversos modelos que, embora eivados de princípios, valores e características atrás descritos, diferem razoavelmente entre si, radicando essas diferenças nas origens culturais que os inspiram. O modelo mais utilizado, designadamente na Europa, é a mediação vítima-infractor.

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Vítima, agressores e vingança: receita moderna de intolerância?

“É a nossa vez”, parece dizer quem se anuncia como “do bem”, ao levantar a voz contra quem é “do mal”. 
É cada vez mais frequente o discurso do vingador, pontuado de pequenas fórmulas. 
Os tradicionais jornais, no seu modo virtual, e as redes sociais estão cheios de berros, de brados, de insultos, de opiniões sem flexibilidade e de um humor inconsequente, caso dos que não se incluem no grupo dos vingadores, mas fazem troça de tudo à volta. 
Sinto-me incomodada com o recurso às fórmulas, aos rótulos e também com a recusa em compreender. Cada um tem seu ritmo, mas o trânsito fica caótico nessa conversa entre fortes, fracos, displicentes… as palavras se sobrepõem, umas abafam as outras, e pouca gente tem tempo e profundidade para mergulhar nessa trama, sem culpar ou imitar quem grita mais alto. 
Sinto o mesmo incômodo quando ouço que determinado debate público não tem importância, porque não é uma prioridade tratar daquele assunto, naquela hora. Tá certo que as pautas são manipuladas, mas com um pouco de paciência, de ironia e de habilidade, devíamos contribuir para desmanchar conveniências, para retirar o poder de quem nos obriga a olhar para um tema, evitando outros. 
Os assuntos vão surgindo, uns são incontornáveis, outros, perfumaria; poderia ser suficiente para nós, como grupo muito muito amplo que somos, seguir em frente, se a perfumaria for assim tão irritante (e tendo ou não o que propor acerca dos assuntos incontornáveis) ou assistir ao debate dito pertinente e oportuno, para aprender mais. 
Mas, num toma-lá-dá-cá a propósito de uma notícia mal redigida num portal da Internet, por exemplo, facilmente se nota como os participantes não têm norte, como comentam a notícia em si ou a falta de qualidade do texto, sem observar o mínimo de coerência no que verbalizam, sem respeitar pelo menos o princípio da inteligibilidade.   

No que diz respeito ao Brasil, é batata! Entendo que as pessoas estejam dececionadas com os rumos da política, com o descontrole da violência, mas não haverá uma pessoa sequer, um grupo para funcionar com contraponto à prática de transformar qualquer debate em queixa contra o governo federal e contra “os direitos humanos”? Ninguém para aconselhar que uns e outros usem menos palavrões e mais metáforas, e mais provérbios, e mais imagens? 
De longe, o que eu suspeito é que as pessoas que dão a cara estão enfurecidas, sem ideias muito responsáveis, sem coragem de encarar o mais imediato, que é o dia a dia no seu mais inevitável conflito. As escolas são barris de pólvora, vamos trabalhar e vamos a elas entregar nossos filhos para a obrigação de estudar, com a melhor participação possível? 
As ruas numa parte do Brasil têm uma frota de carros absurdamente grande, por isso vamos com calma ao volante, tenhamos respeito dentro dos meios de transporte público, com o ciclista e como ciclista, com o pedestre e como pedestre.  
As greves nas universidades já eram uma opção quando eu ingressei no curso de Letras, em 1994. Desgastavam alunos, professores, não resultavam em muitas contratações (pelo menos não foi o que eu vi, como aluna), quebravam o semestre e o ano letivo e davam uma insegurança enorme no principal, que é o aprendizado (do conteúdo, da cidadania). Hoje, em algumas faculdades, foram colocados nos corredores até sofás e eletrodomésticos dos alunos, como forma de protesto. Quem resguarda o direito de outros membros da comunidade, que podem precisar transitar dentro dessas faculdades livremente? Quer dizer que a mais inteligente resposta aos tiranos é tiranizar os outros? 
Já escrevi muito superficialmente sobre uma ideia que eu conheci por meio de um livro de Alberto Manguel, escritor argentino, e agora volto a ela. O livro é No bosque do espelho. 
Ele tem um raciocínio bem fundamentado em autores conhecidos do público da literatura de ficção (como Borges, Kipling e Conrad). Na leitura que eu faço do capítulo VII, “Crime e Castigo”, ele mostra como prevalece entre nós a ideia de um direito à vingança. 
Segundo ele, essa ideia é o resultado de uma intolerância que, por sua vez, é retrato da estupidez de alguns regimes. Quem tem mais poder e não sabe usá-lo, oprime; quem é oprimido às vezes responde com a mesma estupidez das autoridades desse regime e, preso a ela, não enxerga mais e fica a falar e falar para os estereótipos, isto é, entra numa conversa enlouquecida com os únicos representantes que vê, sem suspeitar que existem, no próprio mundo dele, outros grupos, outras vozes, outras razões. 
Manguel salienta que entre a literatura que é mero rabisco (por mais refinada que seja) e a possibilidade que só ela dá de abrir horizontes a partir de rabiscos, existe uma saída digna até para quem foi tomado pela ideia de vingança. 
Está no final do capítulo, cujo subtítulo é “Idade da Vingança”, uma curta história real sobre um homem equilibrado que, depois de perder filho e nora, escolheu a vingança. Nas últimas linhas, o pote de ouro no final do arco-íris: quem tem força maior que a da vingança, quem tem um valor mais alto, precisa fazer bom uso dos seus argumentos e, com eles, apontar um caminho de mais dignidade. No caso verídico relatado por Manguel, estão um poeta e Mães da Plaza de Mayo, ambos oprimidos com a mais dura das crueldades. Um deles acaba persuadido pelo outro a crer na liberdade de nos distinguirmos dos opressores, ao abandonarmos a ideia de vingança. O resto é história. 

Extraído do site: http://www.ponderapandora.blogspot.pt/

Betina Ruíz